terça-feira, 9 de setembro de 2008

O anjo Malaquias


O anjo Malaquias
(Mário Quintana)

O Ogro rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos, com esse exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de aparentar, por esporte.
Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele. Chamava-se Malaquias - tão piquinininho e rechonchudo, pelado, a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da primeira infância...
O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre. Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito... saiu voando janela em fora...
Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima, atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a Mãe de Deus lhe vale!
Que o digam as nuvens, esses lerdos cágados das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça para baixo.
E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no entrechocar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como cabelos de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase... E o tenor que dá, de súbito, uma nota em flaso... Todos escutam, no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E quantas vezes um de nós, ao levar o copo ao lábio, interrompe o gesto e empalidece... - O Anjo! O Anjo Malaquias! - ... E então, pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos que foi apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um pneu estourou, longe... na estrela Aldebaran...

A primavera da lagarta



. Grande comício na floresta, bem no meio da clareira debaixo da bananeira.
. Dona formiga convocou a reunião:
(Formiga) – Isso não pode continuar!
(Camaleão) – Não pode não! Apoiava o camaleão.
(Formiga) – É um desaforo. A formiga gritava.
(Camaleão )- É mesmo! O camaleão concordava.
. A joaninha que vinha chegando naquele instante, perguntava;
(Joaninha) – Qual é o desaforo, heim?
(Formiga) – É um desaforo o que a lagarta faz!
(Louva – a - deus) – Come tudo que é folha! Reclamava o louva – a – deus.
(Formiga) – Não há comida que chegue!
. A lagartixa não concordava.
(Lagartixa) – Por isso não, que as senhoras formigas também comem!
(Camaleão) – É isso mesmo! Apoiou o camaleaõ que vivia mudando de opinião.
(Formiga) – É muito diferente! Depois a lagarta é uma grande preguiçosa, vive lagarteando por aí.
(Camaleão) – Vai ver que a lagartixa é parente da lagarta! Disse o camaleão que já tinha mudado de opinião.
(Lagartixa) – Parente não! Falou a lagartixa. – É só uma coincidência nome!
(Formiga) – Então não se meta!
(Gafanhoto) – Abaixo a lagarta! Disse o gafanhoto. – Vamos acabar com ela!
(Libélula) – Vamos sim! Disse a libélula. Ela é muito feia!
. O senhor caracol ainda quis fazer um discurso.
(Sr caracol) – Hum...é...minhas senhoras e meus senhores! Como é para o bem geral e para a felicidade nacional, em meu nome e em nome de todo mundo interessado...como diria o conselheiro Furtado, quero deixar consignado que está tudo errado!
. Mas como o caracol era muito enrolado, ninguém prestava atenção no coitado.
. Já estavam todos se preparando para caçar a lagarta.
(Aranha) – Abaixo a feiúra! . Gritava a aranha, como se ela fosse muito bonita!
(Louva – a – deus) – Morra a comilona! . Exclamava o louva –a – deus, como se ele não fosse um comilão também.
(Cigarra) – Vamos acabar com a preguiça! . Berrava a cigarra, esquecendo de sua boa fama.
. E lá se foram eles, cantando e marchando:
(Todos) – Um, dois, feijão com arroz...Três, quatro, feijão no prato...
. Mas... a primavera havia chegado. Por toda a parte havia flores na floresta. Até parecia festa...Os passarinhos cantavam. E as borboletas! Quantas borboletas! De todas as cores, de todos os tamanhos, borboleteavam pela mata. E os caçadores procuravam pela lagarta.
(Todos) – Um, dois, feijão com arroz...E perguntavam às borboletas que passavam:
- Vocês viram a lagarta que morava na amoreira?
- Aquela preguiçosa, comilona, horrorosa?
. As borboletas riam riam...Iam passando e nem respondiam!
. Até que veio chegando uma linda borboleta.(Borboleta) - Estão procurando a lagarta da amoreira?
- (Todos) – Estamos sim! Aquela horrorosa,! Comilona!
. E a borboleta bateu as asas bateu as asas e falou:
(Borboleta) – Pois sou eu.
(Todos) – Não é possível, não pode ser verdade! Você é tão linda!
. E a borboleta sorrindo, explicou:
(Borboleta) – Toda lagarta tem seu dia de borboleta. É só esperar pela primavera!
Não é possível, só acredito vendo!
(Borboleta) - Venha ver! Isso acontece com todas as lagartas. Eu tenho uma irmã que está acabando de virar borboleta.
. E todos correram prá ver! E ficaram quietinhos espiando.
. E a lagarta foi se transformando, foi se transformando até que de dentro do casulo nasceu uma borboleta.
. Os inimigos da lagarta ficaram admirados!
- É um milagre!
(Camaleão) – Bem que eu falei! Disse o camaleão que já havia mudado de opinião.
. E a borboleta falou:
(Borboleta) – É preciso ter paciência com as lagartas, se quisermos conhecer as borboletas.

(Retirado do CD “Mil pássaros” Produzido por: Sandra Peres e Paulo Tatit,, narrado pela própria autora da história: Ruth Rocha)